A Luta pelo Direito já conquistado
O Caso
Depois de oito anos de trâmite processual, consecutivas derrotas, juízos de reconsideração descumpridos, determinações judiciais de ônus probatório impossível e interposição de todos os recursos cabíveis e imagináveis, finalmente, após trinta anos de constituição se fez valer o direito constitucional previsto desde então.
Mas que direito seria este… algum caso de complexo, difícil, uma nova tese?
Nada mais do que a mera igualdade entre homens e mulheres, só que desta vez, atingindo um lado pouco conhecido, em que o homem, teria uma desvantagem ao não ser beneficiário da pensão por morte de sua esposa, falecida entre o advento da Constituição Federal de 1988 e a Lei de Benefícios de 1991.
Ambos eram trabalhadores rurais em sua pequena proprieda. Na época e a lei de então previa que o homem seria beneficiário da Pensão, apenas se comprovado uma condição excepcional, que a mulher fosse então a chefe da família, assim dizia a Lei da época:
unidade familiar, o conjunto das pessoas que vivem total ou parcialmente sob a dependência econômica de um trabalhador rural (…) chefe da unidade familiar: o cônjuge do sexo masculino, ainda que casado apenas segundo o rito religioso, sobre o qual recai a responsabilidade …
Art. 298 - A pensão por morte do trabalhador rural é devida aos seus dependentes, a contar da data do óbito (…) Parâgrafo único - Somente fazem jus à pensão os dependentes do trabalhador rural chefe ou arrimo da unidade familiar (…)
Nota-se a clara dependência familiar presumida a partir da figura masculina na época, esse texto é do Decreto 83.080-79. Eu usei o tesseract
para transformar esse Decreto em um texto pesquisável, está neste respositório de acesso público aqui. Há algumas falhas na leitura da imagem, mas ainda assim é melhor do que ficar vendo o decreto original.
Então porque foi tão custoso conseguir um direito tão simples e tão claro e tão bem exposto na nossa Constituição de 88:
Art. 5º (…) homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição
Não é preciso discorrer sobre a aplicabilidade imediata deste dispositivo ou sobre teorias mais complexas como a força normativa da Constituição, qualquer pessoa consegue ler e definir o propósito normativo que coloca homens e mulheres em pé de igualdade, mas enfim, vamos discutir um pouco sobre o direito.
Incongruências
Esta é apenas uma das muitas incongruências da aplicação do direito, neste caso, apenas salta aos olhos dado a tamanha dificuldade enfrentada para chegar ao direito comparado à sua simplicidade de aplicação.
E quantos casos não foram perdidos desta forma, em que o caminho seguido não foi bem sucedido, em que a aplicabilidade e o entendimento do julgador ainda não estavam maduros para enfrentar o questionamento desenvolvido pelo advogado e o caso caio no limbo da coisa julgada para nunca mais ser discutido.
Quantas vezes este direito pereceu desde 1988 até 2018 (quando este caso foi julgado) e quantas foram as pessoas que pereceram aguardando a resposta do Judiciário.
Até na época em que esse benefício foi concedido no STF, os juízes de primeira instância ainda determinavam que se comprovasse a condição de chefe ou arrimo familiar da mulher. Pior, o STJ sequer analisa o caso em Recurso Especial por entender como uma questão de cunho constitucional, o que só dificulta o exercício de um direito já conquistado e consagrado na Constituição.
Hoje quando eu reescrevo este artigo talvez a situação não seja tão relevante, talvez os casos como este tenham acabado, já que se passou muito tempo dos óbitos ocorridos neta época. Mas ainda assim é importante refletir sobre as decisões judiciais e levantar um questionamento, até que ponto deve valer a regra da imutabilidade das decisões, especialmente no âmbito do direito previdenciário, cujos direitos assumem relevância social ímpar?
A luta
Como já dizia Ihering, o direito não é pura teoria, mas uma força viva, e como tal, não podemos deixar de comparar nossos processos com batalhas. Geralmente há grande satisfação em vence-las, ainda mais em processos longos como este.
Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta: todas as regras importantes do direito devem ter sido, em sua origem, arrancadas àqueles que a elas se opunham, e todo o direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que alguém esteja decidido a mantê-lo com firmeza — Rudolf von Ihering, A luta pelo Direito.
Entretanto, esta é uma vitória que deixa um gosto amargo e reflexivo, como já exposto, uma demonstração de que o direito, mesmo que já conquistado, ainda passa por um processo de luta, de construção e convencimento constante que exigem além de técnica, muita força de vontade, especialmente nos momentos de maior dificuldade, como particularmente foi este caso para mim.
Na época do caso meu irmão que era o advogado responsável pelo caso tinha acabado de falecer e eu me deparei com esse caso de dificuldade ímpar sem conhecer quase nada de Direito Previdenciário na época, perdido em meio de centenas de processos que eu teria que cuidar e administrar de uma hora para outra sem ter ninguém para me socorrer. Cheguei a escutar conselhos de supostos advogados mais experientes que era uma causa perdida, que não valeria a pena recorrer.
Era um simples processo de juizado mesmo…
Mas eu não desisti, acreditei em mim, nas minhas pesquisas e fui pra luta. Primeiro entrei com Embargos de Declaração pedindo esclarecimentos do Acórdão da Turma Recursal, que manteve o entendimento de primeiro grau do juiz que entendi que ainda era preciso demonstrar a qualidade de chefe e arrimo familiar da mulher, isso em 2016 e a Sentença datava de 2011.
Vejam que em pleno 2016 a Constituição Federal de 1988 ainda não estava sendo aplicada devidamente.
Nesta época os Juizados Especiais Federais não eram tão eficientes, assim como suas Turmas Recursais, mas isso não implicou numa melhoria na qualidade das decisões como poderíamos supor hoje, infelizmente isso parece ser um problema sistemico.
Voltando a história… depois dos Embargos que foram sumariamente negados, tive que elaborar um Recurso Extraordinário. Nessa época eu ainda era esperançoso e no mesmo ato fiz um pedido de reconsideração para o juízo, que provavelmente, nunca foi sequer lido.
Em 2018, o processo retornou do STF com o Recurso Extraordinário provido garantindo a aplicação da Constituição que previa isonomia de tratamento entre homens e mulheres, simples não é mesmo?
No final do processo os valores recebidos ultrapassaram a casa dos duzentos mil reais, além de conseguir todos os benefícios em atraso consegui retroagir ainda 5 anos anteriores ao óbito, uma vez que a legislação da época previa a concessão do benefício a partir da morte do segurado e não a partir do requerimento.
Infelizmente o meu cliente nesta época já estava muito idoso, com a saúde debilitada e recebeu poucos meses de benefício antes de falecer. Uma pena a Justiça ter demorado tanto para acontecer, como dizem, tardar também é falhar. Espero que estes valores tenham pelo menos tenha aliviado as suas dificuldades no final da vida, garantindo a ele e a sua família um pouco mais de conforto e pelo menos a sensação de vitória na justiça depois de tanta batalha.
Apesar de tudo isso, acredite no ideal de justiça a ponto de superar todas opiniões contrárias e a descrença. Lutar em um cenário em que todas as chances estão desfavoráveis e especialmente contra todas as barreiras impostas pelos tribunais.
Acima de tudo, o advogado deve acreditar em si mesmo, na sua visão e interpretação, construir e lutar pelo direito de seus clientes em uma busca silenciosa cuja maior recompensa é participar da transformação do direito.